05 janeiro, 2021

 

Participação Concurso Literários: Contos da quarentena - Editora Lello -  Portugal. Maio de 2020.


Máscaras

Lá fora o vento varria as ruas, em um dia atípico, já que em dias ditos normais, estariam atulhadas de pessoas apressadas. Dentro da sala iluminada da grande empresa de materiais básicos e equipamentos para hospitais, a Santos S.A., Glória observava os colegas de trabalho com uma distância de dois metros uns dos outros. Todos estavam tais como ela, “mascarados”, porém, a respiração ofegante demonstrava certa claustrofobia da parte deles. No entanto, para Glória a sensação de bem-estar e proteção era uma antiga conhecida. Em seu peito, contudo, a falta de seu pai latejava em dores agudas.

Pela primeira vez sentia-se parte daquele ambiente, bem como da sociedade. Ela, que era a primeira a chegar ao trabalho e a última a sair; com sua fala monossilábica, direta e um tanto ríspida, não demonstrava empatia por quem quer que seja. Seu cargo de administradora permitia-lhe ser distante, ainda que esse cargo exigisse a função de organizar, gerenciar, coordenar e orientar recursos financeiros, físicos, tecnológicos e humanos, mas tudo isso sem nenhum vínculo afetivo: apenas ordenava, sem dar chance de argumentação ou questionamento.

O dono da empresa lhe dera o cargo não porque era amigo de seu pai, mas, sim, porque fora muito bem no teste. Ela se sentia “segura”, pois Santos sabia o porquê do uso da máscara no trabalho e, em nenhum momento, a questionava. Já as outras pessoas, a princípio, imaginavam que ela tivesse uma doença, ou talvez fosse hipocondríaca, ou coisa do gênero.

            Pela primeira vez, Glória se sentia bem no meio daqueles que a hostilizavam pela máscara usada em seu dia a dia. Trabalhava ali já havia três anos e, ainda, assim ouvia motejos:

– A mascarada; A fantasiada; A monstra; A misteriosa...

            Seu trabalho ficava apenas a um quilômetro de casa. Isso lhe permitia ir almoçar com pai todos os dias. Permitia, mas não mais.

No bairro, os comerciantes já haviam se acostumado com sua rápida aparição. Às vezes, entrava no mesmo bistrô e pedia um prato para viagem. Isso, quando perdia para o pai alguma aposta, quase sempre sobre um jogo literário.

Para evitar os olhares curiosos comprava roupas, remédios, itens de higiene pessoal por aplicativo. É bem verdade que muitas das roupas não davam muito certo, mas tinha muito bom gosto.

O único lugar em que entrava e ficava horas a fio era a livraria da esquina de sua casa, lugar “sagrado”, não somente pelos afrescos do teto, que dá ao local um ar de céu, de paz, mas pelo canto silencioso e quase escondido que lhe permitia observar o vaivém de pessoas. Era frequentadora tão assídua que os funcionários já nem se incomodavam mais. Ali esquecia sua “marca”, sua tristeza, sua solidão.

 

 

Seu pai falecera havia um mês, com apenas 66 anos de idade. Era diabético e entrou na estatística de mortos pela Covi-19. Essa doença avassalou o mundo e, assim, tirou dela o seu porto seguro. Tudo aconteceu tão bruscamente e nada pareceu fazer sentido, pois a cidade de Wuhan, na China – onde a epidemia de coronavírus teve início – ficara tão longe dali.  Isso a fez pensar: “Longe definitivamente é um lugar que não existe”.

Glória retornava do trabalho pontualmente às 20 horas. Como sempre, não pegava o elevador, preferia sempre ir pelas escadas – para evitar outras pessoas – com os sapatos nas mãos. O piso gelado nos pés descalços lhe dava a sensação de liberdade. Quando chegava próximo à porta, já sentia o aroma do jantar preparado por ele, pelo capitão “Júlio Verne”, carinhosamente chamado por ela. Contudo, naquela noite, nenhum cheiro e muito menos o barulho das panelas se ouvia. Entrou rapidamente, mas o único som foi o miado de seu gato. Um miado diferente, quase temeroso.

            – Capitão Verne!

            Não houve resposta. Seu coração gelou como água álgida. Foi pé por pé ao quarto do pai, que arquejava, e sua pele estava quente feito brasa. Glória chamou uma ambulância. Fora internado. Seus olhos se entrelaçaram: ele queria falar, mas a falta de ar o impediu. Apenas piscou como se ela pudesse entender o que isso significaria.

Ela também passou por uma consulta – quase se esquecera de sua iatrofobia – sua pressão arterial deu um alerta, era o medo que a figura médica lhe causava, porém sem sintomas respiratórios voltou para casa. Deveria ficar em isolamento por 14 dias. Apenas mandou uma mensagem para o patrão. Uma mensagem curta, sem maiores explicações, apenas o básico.

Ligou para o avô materno, Joaquim. Não revelou a gravidade, mas recomendou que ele se cuidasse.

O avô teve um papel importante na vida de Glória, pelo menos na infância. Com ele tivera momentos álacres, aqueles átimos de avô e neta, que tudo pode: sobremesa antes do jantar; dormir sem tomar banho; a mesma história contada dezenas de vezes; subir em árvores; tomar refrigerante; correr pelo campo da bela chácara “Recanto das Rosas”, que tinha um jardim magnífico, com flores diversas, contudo, eram as rosas que predominavam: de todas as cores, espécies e variedades. Rosa em homenagem à filha, mãe de Glória.

 

 

Depois de falar com o avô ficou absorta na noite mais escura de sua vida. O mutismo das paredes brancas lhe fazia companhia, mas em nada lhe trazia paz. Sentada no sofá azul, o mesmo que ela se referia como o “mar” do capitão, que “mergulhava” em horas de leitura, absorto por um romance policial ou ficção.

Somente no dia seguinte, no final da tarde, teve coragem de entrar no quarto do pai e, toda equipada com luvas e avental, limpou-o, colocando todas as roupas na máquina – que produzia um barulho que até então não percebera que fazia. Mesmo porque, era o pai o “lavador” oficial. Maníaco por limpeza, não dormia em cama suja. Para ele, o lençol com mais de três dias de uso estaria tramposo. Exagero era um de seus defeitos. No entanto, para a filha, ele era a perfeição em pessoa.

Dia e noite, a mesma sensação de apreensão e insulamento. Todas as manhãs, às 10 horas, o telefone tocava, e seu coração ascendia uma esperança que aos poucos se tornava vã, pois uma enfermeira lhe passava o boletim-médico nada animador.

 

 

Cinco dias se passaram.

Depois de um banho e um comprimido para dormir, novamente no sofá azul, perdeu-se no cansaço da noite quente. Sonhou com um corvo que voava ao redor da Terra. E, ao mesmo tempo, o corvo a carregava num voo. Do alto, ela via a morte largada em todos os cantos do planeta. Tentava acordar, pois sabia que era um pesadelo, mas os olhos e a mente reviviam a cena horrenda. Quando, finalmente, uma pomba lhe puxou para si e mostrou a água lavando o mundo, tirando o mau cheiro e a dor física dos poucos sobreviventes que restavam.

Acordou às três e quinze da madrugada, depois de muito esforço, com um som longe, mas insistente. Seu celular com uma luz brilhante lhe deu o norte da chamada.

– Alô!

– Sinto muito...

Nenhuma lágrima, nenhuma palavra proferiu. Engrelou-se no velho roupão do capitão e, de olhar fixo no vazio, permaneceu até o sol, nada incomodado, clarear o dia insólito.

Nada segura o tempo, as horas vêm e assumimos o agendado ou o provável. Há certas coisas inadiáveis, como o nascer e o morrer.

Às 11 horas, sem ninguém, sem os amigos, sem flores, sem choro, sem despedidas, o Capitão Verne fora sepultado.

 

 

De volta ao seu lar desabitado.

Seus colegas-funcionários lhe mandaram flores com um cartão de pêsames. Mago, o seu gato, veio aninhar-se ao seu colo, ronronando carinhosamente.

De repente, o seu mundo ficou mais desvalido.  

As lembranças viam sem pedir licença a levava ao passado e ao presente. Divagava:

– O presente tem esse nome por ser um presente? Presente mesmo, aquilo que recebemos de alguém? Não! Esse presente é o intervalo de tempo localizado entre o passado e o futuro; o momento atual. Esse momento doído e doido. O agora, vazio, repleto de nãos, de mortes, de tristezas.

Uma única certeza tinha: não teria e nem precisaria dar maiores informações e muito menos satisfação a quem quer que fosse.

Os amigos do pai ligaram aos montes para saber como ela estava. Entre eles, o senhor Santos:

– Se precisar de alguma coisa! Este fora um grande amigo de seu pai, principalmente quando Rosa partiu. Tudo o que ela carecia já não mais teria. O passado acabou, o hoje pesa, dói e o futuro... Que futuro? Com quem poderia ser ela mesma?

 

 

Seu apartamento ficava no quinto andar de uma rua arborizada. A Rua da Praça dos Ipês. Ali, em seu reduto destituído de gente, mas muito bem decorado, e com o seu fiel companheiro que não é um cão, mas um gato.

O seu pai compara esse imóvel para que ela ficasse mais perto do trabalho e, principalmente, pela livraria da esquina.

O capitão a fazia rir, sonhar e também fora ele que a ensinou gostar dos números e muito mais das letras. O pai sempre lhe dizia:

– Filha, os números para nós, significa profissão, já as letras, nossa diversão. E de fato, era mesmo.

Em sua adolescência, ele comprava dois livros, ambos os liam ao mesmo tempo, para depois discutir de cabo a rabo, como Os bichos, uma coletânea de catorze contos de Miguel Torga. Foi assim que ela teve seu encontro com as letas e, desde então, ler é um prazer e uma fuga da realidade, às vezes cruel.

Quanto ao seu nome, Glória, ele disse recentemente que é uma referência ao filme Dor e glória, de Pedro Almodóvar.

– Mas como? – perguntou ela – Se o filme foi lançado em 2019 e estamos em 2020? Isso a fez rir muito. O seu pai saía com cada uma, inventava histórias, personagens.

Para Glória, o pai, na verdade, poderia lhe ter dado o nome de Dor, se o filme tivesse sido lançado antes do seu nascimento, embora este nada tenha de sofrimento.  Pelo contrário, é alegre e comovente. Assim, Dor ou Glória daria no mesmo.

Fazendo uma retrospectiva de sua vida, chegara à conclusão de que tivera mais dor do que magnificência, mesmo com o nome de Glória.

Sua mãe Rosa, estudante de música, mais precisamente de violino, a mais bela flor, como dizia seu pai, morreu aos trinta e três anos, quando Glória tinha apenas quatro anos.

Os seus pais se conheceram por acaso: se esbarram na Rua das Flores e, segundo ele, foi amor à primeira vista. Logo depois se casaram, pois ela sonhava em ter muitos filhos, porém demorou muito para engravidar. Enquanto isso, o pai trabalhava dia e noite para ter estabilidade financeira.

Quando finalmente Glória nasceu, foi realmente a “glória” para a mãe.

Três anos depois, mais uma alegria. A mãe novamente grávida, feliz. Mas, no sexto mês o pequeno nasceu e três dias depois morreu. A pobre mulher entrou em uma tristeza permanente, nem mesmo Glória e o violino foram capazes de tirá-la do adro a que ela entrou.

 

 

Numa manhã gelada, a mãe acordou com um beijo do marido que estava saindo para o trabalho. Ele, normalmente, preparava o café da manhã para elas, mãe e filha, porém, perdera a hora. Saiu apressado depois de ver que a pequena ainda dormia.

Quando Glória despertou, chamou pela mãe, que se arrastando da cama quente foi até a cozinha e colocara uma chaleira de água para ferver. Viu que a filha estava brincando no tapete da sala. Caminhou até o banheiro. O espelho mostrava uma pessoa apática e sonolenta.  Entrou no chuveiro a fim de minimizar a madorra. Na verdade, este era o seu estado nos últimos meses. O sono lhe trazia esquecimento.

De repente, ouviu-se um grito de imensa dor. Por um segundo, despertou-se de seu estado imoto. Glória, a água...

Ver a filha com o lado esquerdo do rosto desfigurado foi o cimo, o fim.

Sono, descanso.

 

Desde então, o pai foi sua referência. Da mãe, tinha como lembrança o doce som do violino, apenas.

Eurico, com a morte da esposa passou a ser metódico, isso para não dizer maníaco por limpeza, cuidava da alimentação, fazia atividade física, tomava os remédios certinhos, vitaminas A, D... Era de uma organização doentia, sabia onde estava qualquer objeto, documento.

Ele pensou que enlouqueceria com a morte de Rosa, mas a filha precisava de cuidados, apoio. Na verdade, ele não tivera tempo para viver a perda de seu grande amor. E com o passar do tempo foi se acostumando a ser pai e filha, somente.

Depois de se aposentar, fazia tudo em ordem cronológica: acordava às 6 horas; tomava banho; prepara o desjejum; lia o jornal; saía para correr, na volta mais uma chuveirada; limpava a casa, todo santo dia; fazia o almoço, pois Glória ia almoçar em casa; limpava a cozinha; tirava um cochilo de trinta minutos; comia uma fruta; lia pelo menos um capítulo do livro da vez; saía dar uma volta e falavam com uns e outros. E, às 19 horas, começava a preparar o jantar, esperando pela filha com a mesa posta e flores a enfeitar a mesa, normalmente, rosas.

 

 

Glória desde os seis anos de idade, começou a usar máscara, pois a queimadura de terceiro grau marcou sua face. O bom é que ela não se lembra de nada, mas conforme crescia não entendia porque era diferente das demais crianças.

Em certo dia na escola, alguns coleguinhas riram muito quando ela tirou a máscara para lanchar. E foi assim que começou o seu tormento. Passou ser uma criança solitária; não comia em público; evitava convites para festinhas; não falava com conhecidos e muito menos com estranhos. É bem verdade, que queria ser “normal”, bela admirada, ou apenas aceita, mas as circunstâncias colocara uma barreira invisível, porém cruel, na cabecinha de uma criança que expandiu seu estigma:  Assim crescera sem amigos. Já em casa, era cercada de amor, de afeto, tanto pelo pai como pelo avô materno, que os visitava ou quando ela passava alguns dias na chácara.  

O avô sempre tentava tirar de Glória o uso da máscara, dizendo-lhe que aquela marca em nada lhe tirava a beleza; que ela podia fazer terapia, buscar ajuda de um profissional, mas o pai não concordava com isso, e assim incentiva a filha a esconder a cicatriz que marcava a face esquerda e descia um pouco abaixo do queixo. Ela, além da máscara, escondia os vestígios da queimadura com os cabelos longos.

Para Eurico, era uma forma de proteger a filha. Para ele, a máscara era uma proteção da maldade alheia. Já para o avô, era uma fuga da realidade. Nada era mais difícil que a perda de sua filha e a neta crescer sem a mãe.

Joaquim, no seu íntimo, culpava Eurico pela morte de sua única filha. Se ele tivesse sido mais atencioso, companheiro... Talvez a filha pudesse ter superado a depressão. Mais isso é algo que não saberemos jamais.

É claro que Glória passou por uma cirurgia plástica, mas, infelizmente, teve infecção bacteriana que, obviamente foi curada, mas a cicatriz ficou mais acentuada. Além disso, depois de tanto sofrimento físico para se recuperar da queimadura e da infecção, passou a ter pânico de médico, o jaleco branco lhe remetia a dores vivas. Foi por isso que o pai optou por não mais tentar.

 

A menina estudava muito e sempre passava com louvor em todas as matérias.

Quando, aos seus quinze anos, o pai lhe deu um anel solitário, ela pensou que o presente era uma cópia fiel de sua vida: solidão.

Nunca teve interesse nos meninos, ou nunca se deixara despertar para um romance. Não se imaginava com ninguém. Sua vida se resumia em estudar e estar na companhia do pai.

Eurico levava Glória para visitar os avós com frequência quando criança, depois, na adolescência, uma vez por mês; uma vez por ano, normalmente, no aniversário ou no Natal. Enfim, como tudo nesta vida, as prioridades mudam.

Glória se formou em Administração e Ciências Contábeis, já que a instituição de ensino lhe dava essa segunda diplomação. O seu pai sentia muito orgulho, pois, de certa forma, ela seguia a mesma profissão dele, contador, que trabalhou quarenta e cinco anos na mesma empresa.

Antes desse emprego atual, Glória trabalhou em várias outras empresas, mas devida a circunstâncias óbvias, não dera certo. Até que o amigo de seu pai a convidou para um teste. É claro que as piadinhas dos colegas de trabalho não foram diferentes das anteriores, mas, ela, em momento algum se deixou ser vista de verdade. Assumiu para esse novo cargo uma postura reservada, austera, embora o olhar fosse de uma pessoa triste, inteligente e doce.

O que parecia a outras pessoas era que Glória era uma criatura arrogante pelo fato de não se misturar e, também, por ser muito competente e impositiva na profissão. Em sua admissão, o problema foi a foto para o crachá, mas isso foi resolvido pelo senhor Santos, que permitiu que ocorresse com a máscara – talvez tenha sido um pedido de seu pai. Aliás, a única foto de rosto, tal como a realidade, com exceção dos documentos e bebezinha, era que o avô tirou. Fora isso, era sempre de máscara e de perfil direito.

Na faculdade não dava a mínima para os colegas, talvez para evitar o porquê da máscara. Não se sentia na obrigação de manter qualquer tipo de relação. Na formatura, sem festa, foi a primeira da turma, mas, como de costume, não participou nem da colação.

Aprendera com o pai a demonstrar altivez, pelo menos aparentemente. Nunca demonstrava um sinal de fraqueza. Vestia-se impecavelmente e sempre de salto alto, os cabelos castanho-claros levemente encaracolados lhe dava um ar clássico. As máscaras sempre combinando com as roupas. Não dava chance a ninguém de se aproximar, mesmo quando recebia um elogio.

A distância que o seu cargo lhe dava com os demais funcionários da empresa era uma dádiva. É bem verdade que sabia das piadinhas e das fofocas que corriam soltas. Mas, por outro lado, tinha conhecimento que outras pessoas ali, por serem “diferentes”, tinham a mesma sentença. Afinal o ser humano, nada perfeito, acha defeitos em qualquer um, seja por ser negro, homossexual, gordo, baixo, magro, cristão, pobre... Ninguém escapa do rótulo da maldade.

 

Décimo dia de isolamento.

Pesquisava na internet notícias sobre a pandemia: a Covi-19 já estava com 4,1 milhões de casos confirmados e 300 mil mortes. Uma dessas mortes é do Capitão Verne. Justo ele que se cuidava tanto. Justo ele que era o seu firmamento.

O que ela faria? Não tinha com quem contar. O que seria do trabalho? A empresa fecharia como tantas outras? Ainda que tivesse uma reserva de dinheiro, este não seria terno. E os outros funcionários que tinham família e que dependiam do emprego? Como sobreviver em um mundo doente?

Preparou um café e encostada na janela entreaberta, observou a rua deserta. As flores dos Ipês balançavam animadamente, uma e outra se deixavam ir. Quisera ela ser uma flor, sem pensamento, sem sangue, sem sentir.

De repente, a lágrima se misturou ao café e, num gosto amargo, desceu ao estômago vazio. Lembrou-se que não fizera uma refeição decente há vários dias. Se o capitão estivesse ali, ela levaria uma bronca daquelas!

Preparou uma torrada com um pão velho que achara na despensa. Mas, o que era um pão mofado, comparado a um vírus que talava o mundo.

Tudo que mais queria era dormir, como a mãe fizera. Teve essa lembrança e, pela primeira vez, compreendeu o adeus... Pôde, finalmente, perdoá-la pelo pecado cometido. Queria ter a mesma coragem, mas era deveras covarde.

 

 

Décimo quarto dia de isolamento.

Acordara com uma sensação de que tudo fora um terrível equívoco. Que o pai abriria a porta contando uma piada sem graça. Contudo, Mago miou, lembrando-a que ele era o único ali, além dela.

Entrou no quarto do pai, abriu o armário de roupas tão bem organizado, por cores; o papel de parede lembrava o outono, sua estação preferida; os livros na estante em um arranjo que iria do maior para o menor, mas ainda assim, ele sabia exatamente onde localizar cada obra, cada autor. Sentiu uma saudade e uma força inexplicável.

Encheu a banheira e mergulhou nela como um peixe sedento. Com o espelho embaçado não conseguia ver nitidamente a cicatriz, mas viu-se por dentro. Ela nunca fora o monstro que muitas vezes ouvira, ela era apenas um ser humano e seguiria, apesar de tudo. Tomara a decisão de agir diferente depois que o mundo voltasse ao normal. Este rompante foi por alguns segundos, logo voltara a dúvidas que lhe acompanhava desde sempre: rejeição, rótulo, desamor.

Sentiu fome. Depois de tantos dias, teve vontade de comer de verdade. Fez um pedido no bistrô. Aproveitou para comprar por aplicativo frutas, leite, pães, ração.

Separou a roupa que usaria no retorno ao trabalho. Adormeceu sem nenhum pensamento.

 

 

Levantou-se uma hora antes, pois já não tinha mais o pai para lhe preparar o café. Arrumou-se e, depois de deixar ração e água para Mago, saiu deixando seu perfume impregnado no tapete bege da sala, pois derrubara o vidro sem querer. Na verdade estava um pouco tensa.

Dentro do carro, percebera que havia poucas pessoas nas ruas, mas, assim como ela, estavam usando máscaras. Isso lhe fez rir, pois todos pareciam iguais.

Já no escritório, foi recebida por palavras de consolo e, por incrível que pareça, sentiu-se bem-vinda. Um e outro colega não estavam, porque estavam doentes ou por serem do grupo de risco.

Depois de tantos dias em casa, foi informada das novas políticas da empresa: em relação à higiene e distanciamento, mas que também teria redução de salário. O que permanecia o mesmo era o fato de estar empregada, pois a empresa era fornecedora de insumos hospitalares.

Após de inteirada de tudo e com muito trabalho para pôr em dia, esqueceu por algum tempo da atmosfera sinistra que pairava no ar. Foi ao banheiro e, como estava sozinha, tirou a máscara para lavar o rosto, quando Alicia entrou chorando. Rapidamente, Glória colocou a máscara, não para somente esconder sua cicatriz, mas, também, para manter o protocolo.

Alicia perdera a mãe pela Covi-19. Glória conhecia bem essa dor, a dor da perda. Elas choraram juntas. Depois de tanto tempo trabalhando no mesmo ambiente, esta fora a primeira vez que se entenderam, sem ao menos dizer uma única palavra.

 

Os dias foram passando e mais perdas. O escritório e a fábrica que antes tinham mais de dois mil funcionários, agora contavam com cinquenta. Glória que trabalhava com cálculos e delegando funções, fora também para a linha de produção.

A cidade parecia um lugar abandonado às pressas. O lixo ganhava mais espaço em cada rua. O medo era notório em cada olhar.

Além da doença matando em todos os continentes, o desemprego crescia. As ruas fechadas, pessoas nas janelas espiando os carros fúnebres e ambulâncias reluzentes e barulhentas. Em alguns lugares, viam-se corpos esperando quem os levassem. Supermercados com prateleiras vazias; lojas fechadas com tapumes em forma de cruz; igrejas e templos vazios; escolas silenciosas.

A livraria, a sua livraria, talvez fosse a única não abandonada, já que os muitos personagens, doutores, professores, poetas estavam presentes nas obras.

 

 

Seria o fim da espécie humana? A história parecia se repetir como a Gripe Espanhola, em 1918. A diferença é que, em 2020, a tecnologia mostra a devastação em tempo real. Ou seja, em janeiro de 2020, a crescente proliferação do novo coronavírus transformou-se em mais um dos maiores desafios da humanidade, e todos tinham informações a respeito. Assim, Glória passou compulsivamente a procurar dados, pesquisar. Queria entender:

“De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), pandemia é um termo usado para uma determinada doença que rapidamente se espalha por diversas regiões, continental ou mundial, por meio de uma contaminação sustentada. Assim, a gravidade da doença não é determinante, mas, sim, o seu poder de contágio e sua proliferação geográfica”. 

“O isolamento social tornou-se a primeira recomendação, bem como cuidados com a higiene contra a doença”.

“O impacto da pandemia de coronavírus no comércio mundial”.

“Em meio à pandemiaeconomia mundial deve recuar 3,2% em 2020”.

“Trezentas mil mortes do mundo.”

Incontáveis informações escusas de que muitos foram contaminados e, pior, ceifados. A situação de óbitos entrava na estatística, não pelos nomes, mas pelos números. E, assim, os mortos foram perdendo seus prenomes.

Já não havia mais um José que perdera a vida pelo vírus. O axioma mostravam Josés, Joãos, Marias, Marcos, Renatos, Antônios, Luzias, Fernandas, Santos, Joaquins...

Avô e o patrão faleceram no mesmo dia.

As horas e os dias já não a distinguiam do fazer, comer. Tanto faz! O cansaço físico e mental era observado em sua face pálida.

Tudo era feito no automático: Levantar, dirigir, trabalhar, comer, não falar, continuar, viver. Viver?

 

 

Depois de mais um dia sem limpidez, Glória chega do trabalho em estado de pura delusão.  Mago quando a vê, solta um miado agudo, e, arrepiando os pelos, sai em disparada.

Deita-se no sofá azul revivendo cada acontecimento cruciante. Talvez o calor tenha agravado ainda mais sua palidez.

Entre um delírio e outro, cita a frase preferida do jogo literário que brincava com o pai: A gente entende pouco do semelhante. Cada um de nós é um enigma, que na maior parte das vezes fica por decifrar.

Lágrimas escorrem pela face disforme, sem fantasia.

Corre o olhar em cada detalhe da grande sala. A desordem demonstra a falta daquele que zelava pelos detalhes e limpeza. O livro Até o fim do mundo, mera coincidência, largado na mesinha lateral, traz lembranças do capitão.

As cortinas nutavam devagar, mostrando as flores secas na sacada. Por um instante pensa no avô, no seu maravilhoso jardim, no cheiro das rosas. Rosa-flor, Rosa-mãe.

Engasga-se com o salgado pranto. Tosse. Procura o ar numa ânsia profunda.

Nada fazia sentido, a não ser o som de um violino que entrava pela nesga janela.

 

A máscara esconde uma face, mas não uma vida.

Num lugar que já fora jardim,

Cresce um silvado pálido.

Não há distinção...

Sono, descanso.


03 janeiro, 2021

...Cada dia um novo hoje

Não me prenderei em amarguras...


    Muitas vezes protelei, arrastei esse momento, mas decididamente já é hora de lhe dizer adeus.
Preciso de outras coisas, não preciso mais de ti. Coloquei em seu lugar uma força tão grande que não te procurarei, nem lamentarei essa perda, chega! 
    Você mais me tirou do que acrescentou. 
   Cansei de buscar aquilo que só era bom por um momento. Eu quero sentimentos eternos, momentos marcantes de alegrias, não momentâneos.
    Enfim, descobri que posso viver sem você. 
   Ser livre é uma escolha muito pessoal e verdadeira quando tomamos em nós a decidida coragem. E hoje, este é meu nome!
    Quero me ser, quero me respeitar.
    Não preciso de nada emprestado, quebrado, juntado. 
    O que não adiciona. Não mais me convém.
    Deixar-te vai me deixar melhor. 
    Hoje não te quero mais e a cada dia farei um novo hoje.
    Nem hoje, nem amanhã.

02 janeiro, 2021

Bicho

 

 Em um lugar sem nome e sem dono viviam muitos bichos. Isso mesmo, bichos, eles também não tinham nomes. Mas  o lugar era de uma beleza sem igual, de rios limpos, flores, árvores, frutos e um ar puro.

Até que um dia, um dos bichos, que era grande, forte e tinha uma juba resolveu ser o rei. Assim, falou ele:

– De hoje em diante quem manda aqui é eu!

A bicharada ficou estarrecida. Foi então, que um bichinho pequeno, branquinho de dentes saltados e orelhas grandes, falou:

– Só se você lutar comigo e vencer!

É claro que o bicho de juba ganhou a luta.

Então outro bicho, até bem grande quanto o de juba, quis lutar. Foi uma luta demorada, pois o bicho era forte e de vários dentes grandes e uma boca que abria e fechava, mas seu couro cheio de relevo, dizem a bichada, o fez perder a luta.

Enfezado um próximo bicho propôs uma competição, o primeiro de ganhasse uma corrida, seria o líder.

Assim, ao sinal de um som de um bicho de penas brancas que voava com um raminho no bico, foi dada a largada.

O bicho “jubento” nem fez muito esforço, pois o outro bicho não chegou longe, devido aos cascos quebrados nas pedras do caminho.

O suposto rei fez um apelo:

– Quem será agora minha vítima?

Não é que um bicho cheio de pequenas e que comia milho apareceu.

A luta mal começou e terminou somente com o rugir o bicho grande.

– Ah! Isso não vai ficar assim, disse um bicho parecido com o último, a diferença é que este tinha crista na cabeça, talvez por isso se “achava” capaz de ser rei.

Mero engano! Ele bem que ciscou, correu e pulou, mas de nada adiantou. O grandão venceu fácil.

E assim, o bicho grande se tornou rei. Mas todos os outros bichos eram livres e viviam em harmonia no paraíso verde.

Até que apareceu um bicho bem diferente e se dizia chamar homem. Este começou a chamar o lugar de Terra e a chamar a bichada de animais.  Prendeu o bicho grande e muitos outros bichos num lugar de nome zoológico. O homem deu ao bicho-rei o nome de leão.  A outros bichos, disse o homem, seria de estimação. Mas a maioria dos animais foi presa ou sacrificada.

Ao bicho branco peludo de orelhas grandes e dentes saltados, deu o nome de coelho. O homem disse ao coelho:

– Seu pelo dará um excelente cobertor! O pobre coelho não sabia o que isso significava.

O bicho grande de couro estranho se escondeu no rio, mas o homem o caçou e tirou seu couro e fez sapatos para seus pés e bolsa para carregar bugigangas.

Ao bicho, que propôs a corrida, deu o nome de cavalo e fez a ele uma espécie de calçado nas patas – gesto nobre até então – e o fazia puxar um caixote de madeira carregando-o para cima e para baixo, fora as mercadorias pesadas, fosse noite, fosse dia.

O bicho que voava com um raminho no bico, passou a se chamar pombo-correio e em troca de comida levava em seu bico recados por toda a redondeza.

Ao bicho de penas deu o nome de galinha, que perdeu suas pequenas por algo com nome de travesseiro, além de ter a promessa do homem de que ela seria almoço de qualquer domingo.

O último bicho que lutou com o agora chamado leão, foi chamado de galo e incumbido de toda manhã bem cedo, faça sol, faça chuva, acordar o homem, mas o pior é que o pobre era obrigado a lutar com os mesmos de sua raça, pois isso era diversão.

Depois disso o bicho, digo, o homem passou a mandar em tudo.

Encontro

Antes de ti eu esbarrava na vida,
Ela me cegava, maltratava.
Como dedos que apertava para sufocar,
Como quem olhava para o pavor.
O tempo não aliviava minha dor.
Pelo contrário, cortava como faca,
Eu via sangue, sentia medo.
Eu me batia nas paredes feito bêbado,
Para machucar meu corpo, meu ínfimo.
Meu jogo era cair, me perder.
Eu ria para o espelho, feito louca.
Ria por fora e chorava por dentro.
Travei uma guerra pessoal.
Eu falava alto, gritava.
Ninguém me ouvia.
Marquei um encontro.
Preparei-me como há muito não fazia.
Cuidei da pele, do corpo e da alma.
Tudo nos mínimos detalhes, com as melhores roupas, os melhores enfeites.
Cuidei de tudo pessoal e verdadeiramente.
Dia e hora marcados, lá fui eu ao encontro. 
Vi-me como sou.
Pedi-me perdão.
Encontrei-me.

Frio


Frio


O frio que mais congela

Não ó o que entra pela janela

Não é a falta de cobertores

Nem a falta de aquecedores

 

É a palavra maldita e mal dita

É falta de abraço

Fria que ultrapassa

Qualquer geada

 

Roupa que não se usa

Fica bem em quem não tem

Sapato que te aperta

Aquece os pés de alguém

 

O frio que mais congela

É a estupidez de quem pode

E não faz nada por alguém

Pense, faça o bem.



Inverno em mim


Ouço o vento
e nele o encontro e
desencontro das folhas.
Quase uma oração
entoada pela força,
pela imensidão do vazio.
Vejo as folhas soltas
e meus pensamentos
também voam.
Levo-me no ar
e na prece te peço
para voltar.
Então meu coração
canta um ritmo antigo.
E com ele me deixo
sonhar.
Folhas ao vento
me lembram aquele alguém.
Aquele que não soube me amar.
Então, deixo ir como folhas ao vento.
Comigo ficou o frio da falta.
Da falta de amor.
Sem você sempre será inverno
em mim.